Eduardo Coutinho e as suas regras de ouro para fazer cinema

Eduardo Coutinho foi um dos grandes nomes do cinema brasileiro. Dentre suas obras Santo Forte, Jogo de Cena, Edifício Master e Últimas palavras, a derradeira obra interrompida por sua trágica morte, mas levada à cabo por seus parceiros de vida e trabalho, num comovente retrato de rostos e desejos que compõem a juventude brasileira.

Se há regras, vamos a elas:

1- A importância do silêncio: a fala de um personagem precisa ser emoldurada pelos silêncios. E estes são respeitados. Não há artifícios, caminhos fáceis, não existem pegadinhas pra capturar a atenção do espectador. O que é, é. E não pode deixar de ser. Nesse contexto, um plano de cinco minutos sem movimentos de câmera, é simplesmente ok. Não precisa ser enxuto, picotado, reeditado. Precisa, como dissemos, ser o que é.

2- À altura do personagem: uma evolução do jeito de enquadrar que é visível nos filmes de Coutinho: o olhar da câmera está na mesma altura que a do personagem em destaque. Nem acima, nem abaixo. No ritual do set de filmagem, diretor e interlocutor estão nivelados, numa condição permanente de troca. Um aprende, provoca e se nutre do outro.

3- O filme é sobre a pessoa, não sobre a categoria ou causa que representa: seus filmes não tratam do movimento negro, da desigualdade social, da pobreza, da crise no ensino médio, da condição feminina, do homem do campo. Mas ao mesmo tempo, tratam. Os filmes são, na verdade, sobre Pedro, João, Mariquinha e quem mais tiver o que dizer num certo tempo e num certo lugar.

4- Há um contrato com o espectador que é dado de cara: em Edifício Master, por exemplo, é a voz do diretor que na abertura do filme expõe as regras do jogo: “este é um filme sobre um prédio de conjugados em Copacabana que tem aproximadamente 500 habitantes. A equipe alugou um dos apartamentos por uma semana e vai contar histórias de alguns de seus moradores”. Pronto, ninguém é enganado ou levado a crer em algo que se transformará em outra coisa. A clareza de intenção é também estratégia narrativa.

5- A coisa acontece num plano e não entre um plano e outro: como não há artifícios de edição, close ups, recursos de foco e desfoco, trilha sonora, imagens de cobertura do que é dito, quem é mostrado, da forma como é, se transforma no centro da narrativa. Os tempos de fala são respeitados, assim como os silêncios. Isso configura um plano. E é por isso que de um “plano” a “outro”, NADA acontece, porque o rito sagrado está no discurso, na figura que é destacada de uma multidão e nos conta algo.

6- Paixão pelo inacabado, pelo sujo, pelo erro, pela imperfeição: num mundo que se quer asséptico, metódico, photoshopado, com efeitos e pós-finalizado, aceitar a crueza da vida sem retoques é um ato de coragem. E isso Coutinho teve de sobra.

7- Criando filmes de natureza “lacunar”: os silêncios tão importantes para o documentarista carioca também significavam lacunas. Nem tudo era respondido, explicado, demonstrado, aferido. A busca era pela verdade possível, transitória, momentânea, pessoal. Como disse Jordana, para Coutinho bastava aceitar “a verdade suficiente”.

8- Forjando o cinema do encontro, o cinema erótico: aqui, dizia Jordana na conversa, estamos falando do erotismo metafórico construído na cena. Aquele que descreve o ato de despir-se e desarmar-se para mostrar-se numa inteireza possível.

9- Criar regras para fazer um cinema “incorporado”: como cineasta, Coutinho precisava criar prisões estéticas para sentir-se livre. Dos jump cuts, às caras e vozes sincadas, passando pela proteção irrestrita do personagem, suas regras autorais eram também uma espécie de cadre (quadro em Francês) onde ele tinha a liberdade que quisesse, desde que não infringisse o combinado consigo mesmo. É porque para ele, no fundo “nunca saímos de nossa própria medida”.

O desejo do anti-espetáculo e a adoção do não-julgamento tão fortemente sacralizados por ele, além de sua crença de que “ninguém é consequência de ninguém”, pra mim definem as poções de um bruxo do cinema que deixou suas marcas e tentáculos numa geração inteira de admiradores e aprendizes do seu ofício, da qual faço parte.

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